quinta-feira, junho 29, 2006


Neste curto espaço entre nós e a morte

tão mal gastamos nossa longa despedida!



Tu, amor de quem não sei o nome

de onde não sei a sorte,

vais passar além deste poema que era teu

e assim, de morte construída,

teus passos vão enchendo a minha vida.



Outro nome será flor sobre teus lábios,

e outros dedos tocarão a límpida frescura

dos teus ombros quase d’água

e saberão de cor o horizonte branco do teu corpo...



E assim iremos de olhos futuros,

tu, envelhecendo da minha ausência,

eu, a erguer-te na curva da esperança,

e outra mão vai desmanchar a tua trança

e hei-de beija teu rosto onde não eras

e serás só o que há antes das horas mais tristes.



Neste curto espaço entre nós e a morte,

onde me vais perdendo,

onde te vou buscando,

nosso amor se vai embora alimentando

a despedida;



não porque morra o tempo em teus braços,

mas a vida.

segunda-feira, junho 26, 2006

varanda para o mar


Todas as casas deviam ter uma varanda para o mar

Para que as manhãs acordassem no velame inquieto da claridade
E as sombras fundeassem frescas pelas paredes opacas do meio-dia
E os entardeceres rebentassem em sotaventos de crepúsculo num quarto

Todas as casas deviam ter uma varanda para o mar

Ou uma janela...
Ou um parapeito...

Um olhar...

segunda-feira, junho 19, 2006


Na janela do quarto há um cisne
cor do sol-nascente.
Não é um cisne real,
é um cisne que eu imagino
num rio que corre junto à encosta de um vale.
O rio nasce na memória
e arrasta consigo doloridos musgos de lembrança.
O cisne bóia e permanece
cortado na vidraça, com ar solene
a ver passar pedaços de recordações,
a ver fluir um rio sem margens.
As recordações vão diluir-se no longe,
o próprio rio secará no tempo,
mortas serão as esbatidas palavras à estiagem dos anos.
Haverá terra nos meus olhos
e silêncio em meus lábios apodrecidos.
O cisne há-de ficar, todavia,
imóvel e rubro,
direito no seu perfil,
coração sangrando,
retrato dos meus dias.

segunda-feira, junho 12, 2006

uma pedra não é de ninguem


Um homem emboscou uma pedra. Apanhou-a. Fê-la prisioneira.
Pô-la num quarto escuro e ali permaneceu de guarda para
o resto da sua vida.

A mãe perguntou-lhe porquê.

Ele respondeu, porque a mantém cativa, porque está
capturada.

Olha, a pedra está adormecida, disse ela, não sabe
se está ou não está num jardim. A eternidade e a pedra
são mãe e filha; tu é que estás a envelhecer.
A pedra apenas está a dormir.

Mas eu apanhei-a, mãe, é minha por conquista, disse ele.

Uma pedra não é de ninguém, nem sequer de si própria. Tu é que
foste conquistado. Estás a vigiar o prisioneiro, que és tu próprio,
porque tens medo de sair, disse ela.

Sim, sim, tenho medo, porque nunca me amaste,
disse ele.

O que é verdade, porque sempre foste para mim o que
a pedra é para ti, disse ela.

terça-feira, junho 06, 2006

o guardião de si mesmo


Escondido em algum dos ângulos
do pensamento, oculto no seu matagal,
fico de vigia durante a noite.
Quero julgar com nitidez a linha
indefinida que separa sempre
a vigília do sono.
Quero saber que porta
a minha mente tem de atravessar,
que sombra aos poucos cai ou sobe
do alto de do profundo,
de que porção de mim terei que desprender-me
e que porção saberá
atravessar o leve umbral comigo.

Hoje o sono não vai poder vir de luvas brancas,
não vai roubar a minha casa impunemente,
vou aprender as suas artes,
vou vê-lo penetrar silencioso
pela porta de trás da consciência.

Assim fico de vigia
e guardo, com olhos bem fechados,
a minha interior escuridão
debaixo da noite escura.

Nada se move, só o pensamento,
cansado dos círculos que tem de
descrever durante o dia. De que parte
do negro infinito virá o sono?
Onde, onde essa linha?

O sol da manhã dá no teu rosto.
Náufrago de ti mesmo,
levanta-te Ulisses.
Que recordas da viagem?
Irónica, a luz atira sobre ti
uma sonora gargalhada.

sexta-feira, junho 02, 2006


Quando se viaja sozinho
pelas imagens que perduram
as evocações ganham um modo tão real
A mancha ténue dos arbustos
indica o caminho para o regresso
que nunca há
o mar ficou de repente perto
sobre esta praia travámos lutas
para as quais só muito depois
encontramos um motivo
era à pedrada que nos defendíamos
do riso mais inocente
ou de um amor
Mas aquilo que nunca esquecemos
deixa de pertencer-nos e nem notamos
Estamos sós com a noite
para salvar um coração